São Paulo, 30 de Março de 2023

Mercúrio conjunto a Baten Kaitos – A barriga da Baleia

Mamãe,

Não segui o seu conselho e me aproximei demais das margens. Não resisti ao chamado das águas revoltas, porém frescas. Tenho andado esquentado ultimamente e, às vezes, preciso de um refresco. O problema é que, hoje, ao me aproximar da margem, fui engolido por Cetus e encontro-me, agora, dentro da barriga do monstro. 

Aqui, o ar é rarefeito e malcheiroso. Há uma gosma ácida nas paredes. Estou juntando restos e pedaços de objetos para construir uma lança e furar o animal de dentro para fora e, assim, como num segundo parto, renascer. Enquanto isso, aproveito para repensar a vida. Agora vejo que andei sem paciência, com pressa não sei do que, de chegar a lugar algum. Esse tempo de gestação será importante para refletir.

Daqui de dentro, mãezinha, consigo ouvir o que se passa no fundo das águas. Há algo acontecendo. Dizem que, ainda hoje, o mal encontrará o mal e um grande pesar se abaterá sobre as águas. 

Cuide-se, minha mãe. Eu acredito estar a salvo nesta minha condição.

Esperando revê-la em breve,

Seu filho,

M.

São Paulo, 27 de Março  de 2023

Saturno em Peixes, Marte em Câncer

Filha,

Há algo que se move nas profundezas. Algo dissimulado, sombrio e traiçoeiro, que tem sido gestado e nutrido por forças perversas. Algo que se camufla no lodo pegajoso do leito das águas e que, por não ser visto nem lembrado, cresce tranquila e lentamente, fincando suas raízes dolorosas e profundas no ventre da terra.

Não se deixe enganar por uma superfície límpida e tranquila. O que vem do fundo sempre nos arrebata de maneira surpreendente.

Mantenha-se desperta, faça seus rezos, cuide dos seus. A hora, agora, é de cautela.

Quando as águas estão revoltas, ninguém pode com elas. E, até que se acalmem, convém afastar-se das margens. Às vezes, o próprio tempo nos ensina que não há outro remédio a não ser aguardar a tempestade cessar.

Prepare-se para a tempestade.

Sua Nãna

São Paulo, 21 de Março de 2023

Lunação de Áries

Caros condôminos,

Venho, por meio desta, oficializar, conforme discutido em assembleia, pautas comuns a todos os conviventes desta pocilga.

Fica, então, estabelecido que:

  • As cantorias matinais devem começar pouco antes do nascer do sol e cessar até 6:35 da manhã;
  • A classe dos amarelinhos em treinamento terá prioridade na alimentação, devendo, para tanto, apresentar-se no comedouro às 11h40;
  • Às companheiras poedeiras, fica estipulado que os ovos do dia devem estar disponíveis até às 10h00, no máximo. Após a entrega das encomendas, as companheiras estão autorizadas a um breve descanso. Em seguida, devem encaminhar-se para os grupos de estratégias previamente indicados individualmente;
  • Os galos de briga continuarão isolados, sem direito a visitas, pelo menos por mais esta lunação. Pelo ódio que disseminaram e pelo estrago que fizeram, a pena será longa. Não voltarão ao convívio em sociedade tão cedo; 
  • Cabe ao síndico fazer cumprir as determinações supracitadas e decidir por situações não previstas em regulamento;

Lembrem-se: o cumprimento das regras garante a boa convivência para todos.

Sem mais para o momento, subscrevo-me

Legorne Gallus

São Paulo, 18 de Março de 2023

Mercúrio nos últimos graus de Peixes

Rob,

Você sabe que não sou fã de esoterismos e teorias good vibes, não é? Porém, ontem, passei por uma experiência no mínimo curiosa, que começou pela manhã. Um sentimento de plenitude foi se apoderando do meu corpo, numa toada crescente de purificação que durou até o começo da tarde. Foi como se uma luz tomasse o lugar do sangue em minhas veias, me percorrendo inteira e causando um relaxamento tão intenso que realmente tive a impressão de ser inundado por algo divino. Ao mesmo tempo, tive uma clareza tão absurda dos meus pensamentos que podia vê-los nadando ao meu redor, como se eu estivesse mergulhado neles. E eles eram tão nítidos que eu quase podia tocá-los. 

Atropelavam-se, empilhavam-se e fundiam-se, formando novos contornos e nuances. Alguns seguiam pela superfície, brilhantes, camuflando outros, mais densos e profundos, que apareciam, às vezes, vindos das minhas próprias entranhas, voltando a mergulhar logo em seguida. As ondas dessa dança de mergulhos profundos e nados superficiais davam origem a outras, como crias indisciplinadas seguindo seu rumo, sem se importarem com padrões pré-determinados.

No passo dessa dança desordenada, ora aqui, ora ali, um pensamento desgarrado escapava, escorria-me dos olhos, passeava, faceiro, pelo meu rosto, contornava meus lábios e caía como um tiro em meu peito. Um tiro certeiro, direto no coração.

Com o impacto, o coração e o pensamento se congelavam por uma fração de tempo e caíam em lados opostos. O coração logo se recuperava, pois, como um tambor, está acostumado aos golpes da vida. Já o pensamento, frágil e inconsequente, seguia fraco e atordoado. O coração, então, com todo o cuidado, resgatava-o em seus braços, aquecia-o e envolvia-o de amor, carinho e compreensão. 

E, assim, tomado de ternura e calor, sentindo profundamente o pulsar cordial, aquele pensamento fortalecia-se e podia seguir seu destino: o de ser comunicado, mas, agora, cheio de afeto e filtrado pelo coração.

Isso é um pouco do que consigo explicar, pois a experiência toda tem lugar no indizível.

Você acha, amigue, que eu devo me preocupar?

Com afeto,

Alba

São Paulo, 15 de Março de 2023

Lua em Sagitário, Marte em Gêmeos – Oposição

Marcinho querido,

Venho falar sobre o nosso encontro de horas atrás e sobre eu ter saído repentinamente, sem explicação. Pensei muito se deveria escrever esta carta e o faço, não por você, mas por mim. Você sabe que sou uma mulher livre. Se assim não fosse, não suportaria a minha rotina de contatos e viagens. E, assim como prezo minha liberdade, defendo que todos a tenham. Nós dois nunca nos fizemos promessas e, tampouco, acordamos que tínhamos algum tipo de relação que não a de amantes ocasionais. Eu gosto da sua companhia e acredito que você goste da minha. E está bom assim. Nunca pedi mais do que isso. 

Portanto, achei desnecessária e desrespeitosa a cena armada em sua cozinha. Sou uma mulher vivida, Marcio, sei muito bem interpretar um recado. E sei, também, identificar um covarde quando estou diante dele.

Duas taças manchadas de vinho tinto, esquecidas sobre a pia, certamente contam histórias melhores do que contaria uma só, não é mesmo? Quando cheguei em casa, me pus a pensá-las: de que sabor seriam, o vinho e as histórias? Mas não cheguei a nenhuma conclusão, pois, agora, me parecem melancólicas e tristes, as taças usadas, sujas de memórias que não chegarão a ser, de promessas que serão lavadas pela manhã, escorridas pelo ralo e fingidas nunca terem sido.

E então, de banho tomado, aguardarão, transparentes, fingindo alegria, pela próxima oportunidade de serem receptáculos de sentimentos. Mas, se tivessem alma, certamente, um dia, cansariam-se e atirariam-se ao chão na primeira oportunidade, espatifando amarguras e ferindo, com seus cacos afiados, as mãos de quem se aproximasse. Contudo, seu triste fim, embora dramático, seria inútil, pois outro cálice altivo e ainda mais transparente ocuparia o seu lugar no momento seguinte, como se nada…

Luamar

São Paulo, 12 de Março de 2023

Lua entre os pratos da Balança e em Trígono a Mercúrio

Cara eu mesma,

Resolvi escrever o que se passa, pois estou como que acordando de um transe. Não me recordo do que aconteceu nas últimas horas. Receio que minha memória esteja falhando. Tia Mirtes teve Alzheimer precoce, será que é hereditário? Não sei como vim parar aqui. Estou em um estabelecimento que parece um supermercado, com longos corredores limpos. Quando dei por mim, um rapaz muito simpático me conduzia para esta fila e dizia algo como: “já volto com informações sobre os corações”. Acho que é a fila do açougue. Uma fila interminável. Deve ser dia de promoção. Bom, vou levar os corações para o Dinho e a Tuca, um bom pedaço de picanha – a depender do preço. Será que eu fiz uma lista? Não encontro em nenhum bolso. Vou levar linguiça e frango também. Para quantas pessoas será? O Túlio e as crianças, Sandra e a namorada, Ziquinho, Téia, Tobias… Ah, o rapaz que me trouxe aqui está voltando, parece que está conferindo a fila. Estranho… Ele me disse que logo será a minha vez. Verdade, me distraí contando as pessoas e nem vi o tempo passar…

Agora, estou em frente a uma balança da altura de uma pessoa. Em um dos pratos, uma pena. No outro, um coração. Sinto um frio subindo a espinha. Baixo a cabeça lentamente. Há um buraco no meu peito…  

São Paulo, 09 de Março de 2023

Lua Algorab oposta a Júpiter em Áries

Meu senhor Apolo,

Trago notícias dos últimos julgamentos, em especial de uma dama a quem conheço bem. A primeira vez que a encontrei foi numa manhã fria, no parque. O nevoeiro se dissipava conforme a luz e calor do sol ocupavam o horizonte e eu estava pousado numa árvore ali perto. Ela pôs-se em pé sobre grama úmida e ali permaneceu por um longo tempo, imóvel, contemplando o lago. Tinha um olhar sereno de quem conhece o peso do tempo e a leveza do amor. Os cabelos, muito brancos e longos, presos displicentemente numa trança, caíam-lhe sobre um dos ombros. Suas vestes negras ondulavam com a brisa fresca. Foi uma visão encantadora. Havia algo familiar naquele semblante, algo que me seduzia. 

A partir de então, esperava por ela todas as manhãs. Antes de partir, ela voltava seu rosto em minha direção e lançava-me um olhar cúmplice de despedida.

Alguns dias, curioso, segui-a e acompanhei-a, atento à sua rotina: colher ervas, preparar chás, receber pessoas doentes, fazer emplastros e rezas. Foram dias encantadores ao seu lado.

Porém, depois de hoje, não a verei mais. Os homens que a julgaram têm medo das medicinas das mulheres. Condenaram-na ao fogo, sem saber que justo pelo fogo é que ela será purificada. São tolos.

Por causa deste evento, meu senhor, aproveito o envio desta, para solicitar alguns dias de dispensa das minhas funções e me recompor. Os homens estúpidos que proclamaram a sua sentença não têm coração, mas nós, os corvos, temos.

Sem mais, subscrevo-me.

Al

São Paulo, 06 de Março de 2023

Lua em oposição a Mercúrio

Pai,

Hoje deu saudade. 

Fui visitar o Jerê. Levantei cedo e fiz torta de frango. Cheguei antes do horário pra aproveitar o tempo com ele. Arrumei uma garrafa com café, uma toalha xadrez, uns biscoitos pra deixar pra ele e um maço de cigarros, porque não permitem mais de um.

Ele não pareceu feliz em me ver. Achei que podia estar aborrecido por alguma coisa que eu não sabia. Arrumei a toalha no chão, no canto do pátio, onde tinha sombra, e fui ajeitando as coisas em cima. Parecia um piquenique. Animada, falei pra ele sentar pra comer e conversar. Quando ele viu que a torta era de frango, ficou um tanto mais aborrecido. Disse que tinha pedido sardinha. Mas eu não lembrava. Ele comeu em silêncio, se lambuzando todo, porque a torta estava boa. Me senti muito culpada. Coitado, estava esperando pela torta. Me senti muito burra mesmo. 

O senhor tinha razão, pai, quando falava que eu era muito avoada, que não servia pra prestar atenção nas coisas. Jerê também fala isso. Se as pessoas falam, é porque deve ser.  

No finalzinho da visita, ele me disse que estava bravo, porque tinha pedido visita íntima, mas o guarda não autorizou. E que, por isso, até perdeu a vontade de me ver. E, depois, a torta…

Coitado. Eu falei pra ele que vou levar torta de sardinha da próxima vez. Ele disse que não precisa, que nem vai esperar, porque eu vou esquecer mesmo. Mas eu prometi que não esqueço.

Jerê me lembra muito o senhor, não sabe disfarçar quando está zangado. Fiquei olhando pra ele, amuado, olhando pro nada, me lembrei de quando era pequena e o senhor e a mamãe brigavam. É difícil estar sozinha no mundo, pai.  

Quando deu o horário de ir embora, Jerê se virou e entrou no prédio. Me deixou sozinha, juntando as coisas. Nem um abraço, nem um aceno…

Como que eu não lembrei que ele tinha pedido sardinha?

F.

São Paulo, 03 de Março de 2023

Lua em Leão

Lindagmar, amada,

Quando se nasce leoa, você sabe, nasce-se com um desarranjo, uma inquietação, um não-sei-quê que insiste em querer escapar, como se houvesse, dentro da gente, uma fome de bicho que precisa romper a pele e procurar o seu lugar ao Sol.

Nascemos com um “devir” que deve ser conquistado a cada dia, a cada passo. O devir e o dever do amor-próprio. Porque amor-próprio se constrói. Se constrói de e apesar de partilhas, escombros, pedaços, cobranças, incertezas, desejos, amores e desamores, de ilusões, sonhos e pensamentos, de relações com os outros e com a gente mesma, de frustrações, expectativas, desenganos e vitórias. 

E, quando finalmente nos encontramos em nós mesmas, cabemos perfeitamente no corpo que habitamos, saciamos a nossa fome, dominamos o nosso bicho e entendemos que, ao fim, o destino não é uma questão de brilhar, mas sim de iluminar e aquecer, de cuidar e nutrir, de agregar e reunir. 

Quando uma leoa descobre em si o amor-próprio, ela sozinha contagia todos à sua volta. E, quando duas ou mais se encontram, até o Sol brilha mais forte.

Esta não é, portanto, minha amiga, uma carta, e sim, uma convocação: vamos rugir para reunir o bando.

ROARRRR

Nina