São Paulo, 14 de Outubro de 2023
Sr. fantasma que mora no meu armário,
Sei que não costumo notar sua presença, mas, quando as luzes se apagam, temos um aflorar de outros sentidos, o que me permite perceber que você ainda está aí. Por mais que as pilhas de blusas e vestidos aumentem, que os espaços fiquem cada vez menores, que as prateleiras de acessórios invadam outras, das calças ou das roupas íntimas, por exemplo, parece que você sempre arruma um jeito de se encaixar e permanecer. Não existe um lugar mais confortável para assombrar?
O problema é que quando fica escuro é que eu consigo te enxergar melhor e parece que, com você, acontece o mesmo: você me enxerga através da escuridão. Talvez, para você, o fantasma seja eu…
Embora nossa convivência seja já de muitos anos, confesso que me sinto muito incomodada quando percebo que me observa. Às vezes, sinto um olhar inquisidor partindo da pilha de blusas. Em outros momentos, sou julgada pelas cores de roupa que escolho. Frequentemente, reparo um descontentamento em determinada saia ou calça, como se houvesse sempre um peso sobre mim, um sentimento de inadequação, de não ser suficiente… E eu sei que isso vem de você. Queria entender se faz isso de propósito, se se diverte nesse tormento… por que é que você permanece?
Então, gostaria de sugerir um acordo: e, se no apagar das luzes de hoje, nós nos encarássemos de frente, como nunca antes, olhos nos olhos, de maneira crua e sincera, até mesmo em desafio? Quem sabe, assim, consigamos entender o que nos une e, quem sabe, possamos seguir em frente, cada um em seu caminho? O que me diz?
No aguardo da resposta,
Raquel, a do lado de cá do armário.